É dia de festa em Dias D’Ávila (BA), cidade a 56 quilômetros de Salvador. Para celebrar o aniversário de emancipação do município, a prefeita inaugura um ginásio de esportes com placar eletrônico e assina ordens de serviço para a construção de outras três obras: uma praça, um posto de saúde e a tão esperada creche municipal. Orçada em R$ 620 mil, a escolinha teria oito salas de aula.
Mas o projeto não sai do papel. Embora a União tenha transferido todo o dinheiro para a prefeitura, a construção da creche é considerada paralisada dois anos depois do anúncio — segundo o Painel de Obras +Brasil, do Ministério da Economia. Uma realidade frustrante que não se restringe à cidade baiana.
O tema das obras inacabadas voltou à baila em março deste ano, depois que o então ministro da Educação Milton Ribeiro admitiu que prefeituras indicadas por pastores evangélicos tinham prioridade na transferência de recursos do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE). A Comissão de Educação do Senado iniciou uma série de audiências públicas para avaliar se a interferência política no repasse do dinheiro compromete o andamento das obras.
De 30 mil contratos financiados pelo FNDE desde 2007, mais de 3,6 mil estão inacabados ou paralisados — o que equivale a 12% do total. Considerando apenas as 2,5 mil obras classificadas como inacabadas, o órgão desembolsou pelo menos R$ 1,2 bilhão até 2019. Desses projetos, 352 nem sequer chegaram a começar. O diretor de Gestão Articulação e Projetos Educacionais do FNDE, Gabriel Vilar, participou de um debate com os senadores e alertou para a gravidade da situação.
— Temos casos de obras que não foram iniciadas, mas foi pago 100% do recurso. Não vou pagar duas vezes pelo mesmo serviço e não tenho o saldo em conta. Mesmo que o município queira, não tem a possibilidade de repactuar. Para outras 481 obras, já pagamos entre 71% e 99% dos recursos pactuados — destaca Vilar. Do total de obras inacabadas, 43% já receberam mais da metade dos recursos.
14 mil obras inacabadas
As creches representam apenas uma pequena fração do problema. Segundo o Tribunal de Contas da União (TCU), o Brasil tem mais de 14 mil obras inacabadas, em contratos que somam R$ 144 bilhões. São escolas, hospitais, pontes, praças, estradas, ciclovias, quadras esportivas, mercados públicos, abrigos, casas populares, aterros sanitários, sistemas de saneamento e urbanização, terminais de passageiros e uma infinidade de outros empreendimentos esquecidos num limbo aparentemente insuperável — mas incrivelmente dispendioso. Se houvesse uma rubrica específica no Orçamento para cobrir as despesas com obras paradas, a dotação seria maior do que toda a verba dos Ministérios da Educação (R$ 113,7 bilhões) e da Defesa (R$ 112,6 bilhões).
Diante desse cenário desolador, a pergunta que fica é: por quê? Por que um país com escassez de recursos e excesso de demanda por serviços públicos se dá ao luxo de congelar uma fatia tão expressiva do orçamento e privar a população de atendimento?
O TCU analisou incialmente os dados referentes a 2.914 obras do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC). Nesse primeiro recorte (veja quadro), as principais causas de paralisação constatadas foram limitações técnicas (47%), abandono pela empresa (23%) e problemas orçamentários ou financeiros (10%). Obras interrompidas por decisões da Justiça ou por recomendação dos órgãos de controle somam apenas 6% dos casos.
No entanto, para o TCU, o sistema de acompanhamento do PAC utilizava “categorias bastante genéricas” para apurar as causas de paralisações. A auditoria decidiu então aplicar questionários entre os gestores responsáveis pela execução dos projetos e promover vistorias em 84 empreendimentos espalhados em todo o território nacional.
A partir dessa nova investigação, o ministro Vital do Rêgo identificou três principais causas para o problema. A primeira delas — classificada como uma “velha conhecida” do TCU — é a contratação de empreendimentos com base em projeto básico deficiente. Segundo o acórdão, há baixo interesse de governadores e prefeitos na realização dos estudos, que são geralmente elaborados em prazo curto e sem o amadurecimento necessário. “O efeito nocivo de se privilegiar o início da execução das obras em detrimento do planejamento é o anúncio de obras sem o devido embasamento técnico, resultando em atrasos e majoração dos custos inicialmente previstos”, concluiu o relator.
A segunda causa sugerida para a paralisação das obras é a falta de dinheiro de estados e municípios para o pagamento de contrapartidas. Parte do problema se deve à queda de arrecadação verificada a partir de 2014. Mas a maioria dos casos ocorre por “distorções no processo orçamentário”, como superestimativas infundadas de receitas e subestimativas de despesas obrigatórias.
Mesmo sem capacidade para arcar com as contrapartidas exigidas pela legislação, o poder público continua anunciando — e iniciando — a construção de novas obras. “Conhecendo o baixo percentual de sucesso, dá-se início a um número excessivo de empreendimentos, na expectativa de que somente uma parcela seja realizada. Mas essa lógica tem resultado em alto grau de ineficiência, desperdício e sobrecarga administrativa”, apontou Vital do Rêgo.
No ano passado, a Corte de Contas promoveu uma nova investigação para monitorar a situação das obras inacabadas de 2019. O resultado foi aparentemente promissor: de 27 mil contratos analisados, apenas 7 mil estavam parados — metade do estoque de 14 mil obras encontradas dois anos antes.
No entanto, os auditores se depararam com um fato estarrecedor: informações sobre 11 mil contratos financiados pela União simplesmente desapareceram dos bancos de dados oficiais. O TCU chamou a atenção para “as significativas discrepâncias” e para “o risco” provocado pela supressão do conteúdo. Para a Corte de Contas, a comparação com o cenário de 2019 ficou comprometida.
“É certo que parte das obras pode ter sido concluída nesse período, sem que outras tenham sido iniciadas, de modo a haver uma redução no número total de contratos firmados. Contudo, as significativas discrepâncias indicam que as razões são outras. O risco aumenta quando nos damos conta de que nessa lacuna de empreendimentos que podem ter ‘desaparecido’ dos sistemas pode haver obras paralisadas que se tornarão inacabadas de fato”, destaca o acórdão.
O TCU recomendou que o Ministério da Economia consolide e publique na internet dados atualizados sobre todos os contratos. A Corte de Contas sugeriu ainda que o Comitê Interministerial de Governança, responsável pelo assessoramento do presidente da República, analise o risco de que obras paralisadas não sejam corretamente informadas à pasta.
Irregularidades graves
A história do Brasil é pródiga em obras faraônicas e inacabadas. Um ícone dessa triste sina é a Ferrovia do Aço: anunciada em 1973 a um custo inicial de US$ 1,1 bilhão, a obra foi suspensa por falta de pagamentos em 1978 e só terminou em 1986 — após consumir US$ 4 bilhões e sofrer drásticas simplificações em relação ao projeto original.
Na década de 1990, outro projeto megalomaníaco escandalizou o país e serviu para uma mudança de parâmetros na fiscalização das obras inacabadas: a construção do edifício-sede do Tribunal Regional do Trabalho (TRT) de São Paulo. Iniciada em 1992, a obra foi abandonada em 1998 após consumir R$ 230 milhões — R$ 169 milhões deles desviados em um esquema de corrupção.
O TCU descobriu os primeiros indícios de irregularidades no TRT paulista em 1994. Naquele mesmo ano, o Congresso Nacional passou a incluir no Orçamento Geral da União um dispositivo que hoje serve de alerta contra novos escândalos: uma lista de obras e serviços com indícios de irregularidades graves, conhecida como Anexo VI. Nesses empreendimentos, os problemas identificados são tão críticos que a paralisação é menos danosa do que a continuidade da obra.
Esse mecanismo de proteção dos recursos públicos é desencadeado todos os anos pelo TCU, que envia para a Comissão Mista de Orçamento (CMO) informações sobre o andamento de contratos considerados suspeitos. O relatório, conhecido como Fiscobras, chega ao Congresso até o dia 25 de outubro — 55 dias após a entrega do projeto de lei orçamentária pelo Poder Executivo.
No Fiscobras 2021, encaminhado durante a elaboração do último Orçamento, a Corte de Contas listou quatro empreendimentos com indícios de irregularidades graves:
• Construção da BR-040 (RJ). Com 35,13% de execução física, houve sobrepreço e problemas nos projetos básico e executivo;
• Ampliação de capacidade da BR-290 (RS). Com 88,12% de execução física, os auditores identificaram superfaturamento;
• Adequação de trecho rodoviário na BR-116 (BA). Com 8,83% de execução física, o projeto de pavimentação estava em desacordo com a licitação; e
• Construção da BR-235 (BA). Com 92,35% de execução física, houve indícios de superfaturamento.
Durante a tramitação na CMO, o relator-geral do Orçamento, deputado Hugo Leal (PSD-RJ), acatou duas sugestões do TCU e incluiu no Anexo VI a paralisação das obras na BR-040 (RJ) e na BR-290 (RS). Os dois empreendimentos em andamento na Bahia (BR-116 e BR-235) foram poupados do bloqueio.
Embora leve em conta as informações prestadas pelo Fiscobras, o Congresso tem autonomia para incluir no Anexo VI obras com indícios de irregularidades graves que não tenham sido sugeridas pelo TCU. Foi o que aconteceu no Orçamento deste ano: o Parlamento decidiu suspender o repasse de recursos para a Ferrovia Transnordestina, o que não havia sido originalmente proposto pelos auditores.
O bloqueio de obras com indícios de irregularidades graves pode ser revisto a qualquer momento ao longo do ano. Tudo depende de uma decisão da CMO, composta por 10 senadores e 30 deputados. Se avaliar que os problemas que deram causa à paralisação foram superados, a comissão pode determinar a continuidade do empreendimento por meio de um decreto legislativo. O projeto só vai ao Plenário do Congresso se houver recurso proposto por um décimo dos membros do Senado e da Câmara.
‘Emenda-janela’
Os parlamentares têm um papel central na destinação de recursos para a conclusão de obras públicas. No Orçamento deste ano, cada um dos 81 senadores e 513 deputados teve a oportunidade de sugerir emendas individuais até o limite de R$ 17,6 milhões. As bancadas estaduais indicaram um total de R$ 5,7 bilhões em despesas.
Embora não sejam a única fonte de financiamento, as emendas parlamentares estão no centro do debate sobre as obras inacabadas. O senador Esperidião Amin (PP-SC) levantou essa lebre durante audiência pública na Comissão de Educação. Ele chamou a atenção para o que classificou de emenda-janela: uma dotação que, embora não seja suficiente para concluir um empreendimento, é usada por gestores locais com motivação meramente política ou eleitoral.
— Não dá para fazer uma obra de R$ 1 milhão? Abre R$ 1 mil só para começar.
Para Amin, é preciso investigar eventuais irregularidades na execução de obras públicas. Mas tão importante quanto isso, segundo o parlamentar, é “consertar o sistema”. O senador defendeu, por exemplo, que a liberação de dinheiro para a construção de creches e escolas por meio do FNDE siga os mesmos parâmetros de desempenho adotados na gestão do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica (Fundeb).
— Alguém de vocês já recebeu denúncias sobre o Fundeb? Não. Por quê? Porque o Fundeb tem critérios. Minha ideia é criarmos 27 fundos estaduais de desenvolvimento da educação. Ele passa a ser não uma repartição pública onde a gente vai pedir dinheiro. Se o prefeito vier pedir, você vai procurar corrigir: “Não, você está com três obras inacabadas. Isso não pode acontecer”. Vamos destinar o dinheiro para acabar as três ou explicar por que não precisam ser feitas — explicou Amin.
Desvirtuamento
O presidente da Comissão de Educação, senador Marcelo Castro (MDB-PI), é o relator do Orçamento de 2023. Ele usa palavras duras para classificar as emendas-janela: “desvirtuamento, deformação, burla e fraude”. Embora proibidas desde 1993, elas deram origem a mais de 2 mil empenhos em 2021.
Castro reconhece que, em algumas situações muito específicas, uma obra pode ser dividida em etapas com bons resultados para a sociedade. Mas esse tipo de gasto deve ser considerado uma exceção. Não pode ser generalizado.
— Você vai fazer uma adutora em um município para beneficiar dez povoados. Vamos supor que isso custe R$ 10 milhões. Não tem esse dinheiro, mas tem R$ 1 milhão. Com R$ 1 milhão, dá para botar água no primeiro povoado. Então, é uma etapa útil. O que você não pode é botar um recurso que não tenha uma finalidade social.
Obras de grande porte — como a transposição do rio São Francisco, orçada em R$ 8,2 bilhões — dependem de uma previsão orçamentária de médio ou longo prazo. Elas são incluídas no Plano Plurianual (PPA), uma lei aprovada para indicar quais são as prioridades do poder público a cada quadriênio.
Em obras de menor porte, no entanto, esse planejamento orçamentário não existe na prática. A cada novo ano, a liberação dos recursos é incerta: ocorre “a conta gotas”, como define o senador Otto Alencar (PSD-BA).
— A obra fica inacabada e dá um prejuízo muito grande. Na Bahia, várias creches foram iniciadas, mas não foram concluídas. Não porque o prefeito não teve a decisão de fazer. Mas porque só se coloca no Orçamento de um ano parte dos recursos, ao contrário de se repassar o recurso integral e fiscalizar a execução física da obra. Acho errado, sou um crítico disso. Se vou fazer um hospital, e ele custa R$ 10 milhões, que se coloque no orçamento R$ 10 milhões para fazer a obra — sugere.
O senador Izalci Lucas (PSDB-DF) alerta para outra faceta do problema. Segundo ele, um componente político pode contribuir para a interrupção de projetos iniciados em gestões anteriores.
— Tem obra com 80% praticamente, quase pronta. O problema no Brasil é que você não tem política de Estado, você tem política de governo. Então, cada governo que entra acaba com tudo e não faz o dever de casa: concluir as obras ou dar continuidade aos projetos que estão funcionando — disse.
Para o senador Humberto Costa (PT-PE), ver tanto dinheiro enterrado em canteiros de obras abandonadas é motivo de indignação.
— Considero um absurdo existirem tantas obras inacabadas e tanto recurso público mal aplicado. É a absoluta ausência de uma política de Estado que garanta que obras iniciadas por um governo terão continuidade e serão concluídas em outros governos. Isso gera um prejuízo enorme para a população, que fica privada de obras e ações importantes — afirma.
O senador Wellington Fagundes (PL-MT) classifica as obras inacabadas como “uma herança maldita”, que pode ocorrer “por falta de planejamento ou por falta de responsabilidade”. Qualquer que seja a causa, segundo o parlamentar, a consequência é sempre a mesma: a população insatisfeita.
— O cidadão reclama e com razão. Temos mais de 2 mil creches inacabadas. O trabalhador que tem seu filho e quer deixá-lo numa creche vê a obra inacabada e fica revoltado. Isso é extremamente ruim para a imagem daqueles estão à frente do serviço público — avalia.
O senador Luis Carlos Heinze (PP-RS) reconhece que o Brasil tem “centenas de obras inacabadas”. Mas, para o parlamentar, o Poder Executivo tem se empenhado para concluí-las.
— Vou citar apenas casos do Rio Grande do Sul. A BR-116 é uma obra parada há muitos anos. Temos três barragens, em Bagé, Dom Pedrito e Jaguari, que praticamente estavam inacabadas e agora retomamos esse assunto. São mais de R$ 150 milhões que estão depositados pelo governo federal. A obra não acaba por falta de uma licitação da empresa, que quebrou. As obras precisam ser finalizadas. Isso é bom para a sociedade brasileira — disse.
Fonte: Agência Senado