O Dia do Vaqueiro Nordestino, no 3º domingo de julho, é uma comemoração móvel do Brasil, que foi criada pela LEI Nº 11.928 de 17 de abril de 2009, cuja data da celebração pode ocorrer entre os dias 15 e 21 de julho de cada ano no calendário gregoriano.
Essa data comemorativa de brasileiros é festejada na data da “Missa do Vaqueiro”, uma celebração realizada anualmente no 3º domingo de julho, com a presença de sertanejos de vários Estados do Norte e Nordeste do Brasil.
A “Missa do Vaqueiro” é um tradicional evento religioso da cultura popular nordestina em homenagem ao vaqueiro nordestino do Brasil, Raimundo Jacó, que atualmente é considerado como o 2º maior evento turístico do Estado brasileiro do Pernambuco, mas que tem crescido a cada ano, consolidando-se como marco no calendário sertanejo, e referência religiosa, cultural e turística do povo do Norte e Nordeste brasileiro.
Durante essa Missa, a maioria do público assiste à cerimônia montada em seus cavalos, e a hóstia da Santa Comunhão é substituída por queijo, rapadura e farinha de mandioca, que são alimentos do cotidiano dos habitantes do sertão.
E nas oferendas, os vaqueiros sobem ao altar e ofertam partes de sua indumentária de couro, arreios e instrumentos usados no pastoreio, convertendo o grandioso evento, numa junção da riqueza da cultura nordestina, com a tradição da Igreja Católica Apostólica Romana.
Para conhecimento, segundo se conta, Raimundo Jacó, enquanto responsável pela guarda do gado do patrão, era um exímio vaqueiro, dono de um aboio que atraía o gado para perto de si de maneira impressionante.
Conforme a tradição, ele teria sido covardemente assassinado em 8 de julho de 1954, depois de traiçoeiramente atingido por uma pedra, nas caatingas e junto ao açude do sítio Lajes, por seu companheiro de vaquejada e fazenda, Miguel Lopes, que então era responsável pela guarda do gado da patroa.
Ainda de acordo com a tradição, Miguel Lopes tinha inveja da destreza do seu rival na lida com o gado, e se doeu de raiva, ao ver que Raimundo havia encontrado e subjugado antes dele, uma rês de estimado valor e famosa por suas astúcias animais, que então era procurada pelos 2 vaqueiros.
A partir dessa tradição, o tempo terminou por juntar o espírito místico do povo, com o credo do homem da terra, até transformar o local da tragédia em destino de constantes romarias, ao ponto de muitos chegarem a afirmar que graças foram alcançadas com os milagres do mártir vaqueiro.
O Sertão nordestino representa muito mais do que um elemento geográfico. Ele é marcado por histórias, carrega consigo dores e lágrimas de um povo sofrido e exibe um cenário arcaico que parece o mesmo dos tempos antigos. A vegetação, tão hostil e rústica, tem em seus espinhos uma representação da dificuldade que é viver em uma região castigada pela fome e falta de água, e esquecida pelos governantes. Nela, um personagem criado ainda no período de desbravamento do Brasil sobrevive hoje quase da mesma forma que na época colonial. Descritos por muitos como heróis, os vaqueiros carregam consigo o próprio Sertão e fazem da região mais seca do País um lugar de luta diária pela sobrevivência e principalmente valorização de uma tradição, que corre o risco de findar por causa da exploração autoritária de quem manda e tem terra.
A história do vaqueiro é paralela ao desenvolvimento da criação de gado no Brasil. Para cuidar e conduzir os rebanhos, os homens do Sertão se submetiam a longas e perigosas jornadas de trabalho para levar os animais de um ponto para outro, ou se aventurar dentro da hostil caatinga em busca do bicho perdido. Nessa época, salário não existia e nem muito menos respeito aos direitos trabalhistas. Hoje, a seca trouxe morte para muitos animais, mas o que se mantém viva é a exploração barata e impiedosa dos patrões.
Vaqueiros carregam injustiças causadas pelos patrões durante toda a história da profissão – Arquivo/Fundação Padre João Câncio
Vaqueiros do Sertão nordestino continuam sendo explorados, mesmo depois da criação, em 2013, da lei que regulamenta a profissão. Ainda hoje, os donos de terra e dos rebanhos insistem em desrespeitar os ‘heróis da caatinga’. Mas a história de sofrimento dos vaqueiros tem sua origem no período colonial. O gado chegou ao País durante o governo de Tomé de Sousa, primeiro governador-geral da nação. Os primeiros animais pisaram em solo brasileiro em Salvador, na Bahia, e até o Século 17 eram criados dentro dos próprios engenhos de cana de açúcar. Nesses locais, entre vários compartimentos, como a casa grande, senzala e moenda, estava o curral, onde os bichos eram cuidados. Porém, o Brasil possui o costume, dos tempos passados até os dias atuais, de desenvolver a pecuária extensiva, que corresponde ao gado criado solto, longe das cercas.
“O gado criado solto começou a se reproduzir e multiplicar, e invadiu o canavial, passando a destruir as plantações de cana. Por causa disso, no início do Século 18, a coroa portuguesa, por causa do prejuízo econômico causado pela destruição das plantações, criou uma lei proibindo a criação de gado a menos de 70 quilômetros do Litoral. É a partir dessa norma que começa a acontecer o processo de interiorização do gado. O animal saiu do litoral e se dirigiu para o que a gente pode chamar hoje de Agreste e Sertão nordestino”, explica o professor de história Everaldo Chaves.
Com a irradiação do gado para o interior do Brasil, começaram a surgir as fazendas. Elas pertenciam aos próprios senhores de engenho, mas, como eles precisavam administrar as produções açucareiras, o trabalho do vaqueiro passou a ser priorizado para cuidar dos animais. Esse trabalhador também ganhou a missão de administrar a fazenda. Na maioria das vezes, os trabalhadores eram índios – conhecedores do interior do Brasil – e mestiços, livres da escravidão, mas inseridos na exploração através da serventia barata. “É nesse momento que começa a surgir o que a gente chama de Civilização do Couro, que nada mais é do que a sociedade pecuarista. Essa fase foi muito importante para a história do Brasil, porque o gado, desde o período colonial, tem uma série de funções: servia para o transporte do ouro, era fonte de alimento, além de o seu couro ser utilizado para a fabricação de roupas, principalmente no Sertão”, complementa o professor.
O vaqueiro de hoje e a “serventia inconsciente”
A história cravada nos livros foi o embrião para a criação do trabalho do vaqueiro. O Sertão nordestino foi marcado pelas criações de gado e principalmente pela figura do “homem encourado” – alusão à vestimenta em couro do vaqueiro -. Mesmo depois dos direitos trabalhistas inseridos no Brasil, não existia salário e nem muito menos vínculo trabalhista. O “pagamento” feito aos vaqueiros, até pouco tempo, era chamado de “por sorte”. De cada quatro bezerros nascidos na fazenda, um pertencia ao trabalhador, a ser entregue no final do ano. Caso precisasse de dinheiro antes da entrega da cria, ele até podia solicitar ao patrão, mas teria que pagar a dívida com um ou mais animais. Na prática, o trabalhador poderia até ficar sem bezerro e sem dinheiro.
Vaqueiro e sua criação de gado em Serrita, Sertão pernambucano
A exploração não ficou presa nos arquivos históricos e ganhou os nossos dias. Passada a regulamentação da lei que reconhece a profissão de vaqueiro, o que existe atualmente é o esquecimento desses trabalhadores que arriscam suas vidas na caatinga, em busca do boi perdido, ou que se submetem a desumanas e longas jornadas de trabalho, quando conduzem o boi por quilômetros, de uma cidade para outra, na esperança de encontrar um pasto rico em comida a fim de salvar o rebanho do patrão. No estado brasileiro onde a cultura vaqueira permanece viva – apesar de agonizar -, o trabalhador é alvo de fraudes e desrespeito. Em Pernambuco, muitos vaqueiros tentam, a base de sacrifício e coragem, manter a tradição de lidar com o animal e desbravar terras hostis e perigosas.
A cidade de Cedro, localizada a cerca de 600 quilômetros do Recife – capital de Pernambuco -, possui homens guerreiros, que antes do sol brotar no céu, já estão prontos para mais um dia de luta. “Lutar”, para quem é vaqueiro, representa uma série de trabalhos desempenhados em um único dia. Pela longa jornada de atuação e por causa da exigência de atividades braçais, muitas vezes perigosas, seja pela vegetação da caatinga ou pelos animais ariscos, os vaqueiros consideram uma ‘luta’ cada dia de trabalho. E as marcas dessa luta são visíveis em José Izídio de Lima, de 58 anos de idade. Há 35 anos, sua vida de trabalho é dedicada ao gado e aos mandados dos patrões. Nas fazendas de Cedro, por bastante tempo serviu aos criadores e, ao atingir a idade que tem hoje, se afastou, pelas condições físicas, levando nada mais do que lembranças. Indenização não existiu e nem muito menos vínculo trabalhista documentado.

Seu José, conhecido como Zé Vaqueiro, não sabe o que é trabalhar com carteira assinada, nem mesmo após a regulamentação da sua profissão. “Eu me levantava de 3 horas da manhã, tirava o leite do gado e levava para o patrão. Mais ou menos de 6 horas, descia para o catingal para buscar o gado. Nunca havia precisão da hora de largar. Nunca recebi salário mínimo e nem hora extra, porque na minha época existia pagamento por sorte. Eu ganhava bezerro, mas quando tinha dívida, devolvia para o patrão. Eu ouço falar em carteira assinada, mas nunca tive. Aqui, as coisas são difíceis… A gente ganha R$ 30 ou R$ 40 por dia de luta”, conta José Izídio, que já chegou a trabalhar mais de 20 horas em um único dia, sem descanso e muito menos recebimento de hora extra.
Sem revelar os nomes dos patrões, o vaqueiro relata que passou por várias fazendas localizadas na cidade de Cedro e em alguns municípios do Ceará. Mesmo ciente da regulamentação da profissão, José Izídio não sabe ao certo por que os patrões não cumprem as obrigações. A fraude é confirmada pelo presidente da Associação dos Vaqueiros de Cedro, Lando de Constâncio. Com quase 26 anos de luta com o gado, seu Lando reitera o desrespeito às normas trabalhistas e descreve, com sinceras palavras, o cotidiano de um dos trabalhos mais antigos do Brasil.

“Ser vaqueiro é uma atividade fundada neste Sertão. É uma vida difícil e pesada. A gente corre risco de morte na caatinga, pois toda vez que vou para a luta volto machucado. Mas é uma luta que a gente gosta, porque nascemos com isso no sangue. Apesar de tantas dificuldades, principalmente pela desvalorização da profissão e da seca, nós tentamos manter viva esta tradição. Tem trabalhador que ganha R$ 30 para fazer uma viagem com o gado, um dinheiro que não dá quase para nada. É triste saber que somos desrespeitados e esquecidos”, conta o vaqueiro.
O esquecimento do vaqueiro como trabalhador e personagem fundamental para o desenvolvimento econômico do Sertão nordestino desvaloriza a luta dos seus antecessores no período colonial. No livro “Missa do Vaqueiro – 40 anos”, o historiador da Academia Pernambucana de Letras, Frederico Pernambucano de Mello, descreve a importância do vaqueiro para o desbravamento do Sertão: “Na saga cruenta da penetração da caatinga, não houve braço mais essencial que o do vaqueiro. O protagonista de maior valor. Herói social sem recompensa, comendo o pão grosseiro do sacrifício em favor do patrão distante, arejado na amenidade do Litoral. Herói pobre, ao lado de outros heróis despojados que o catingueiro elegeu em sua alma simples de caboclo, a exemplo do matador de onça, do amansador de burro brabo, do cantador de viola, do cego rabequeiro de pátio de feira, do poeta de cordel”.
O historiador também lembra que todo o trabalho pesado, com extrema exigência da força física humana, ficava nas mãos do vaqueiro. Mas o esforço forçado não era reconhecido. “Nos sertões do Nordeste, o poder dos coronéis esteve sempre montado sobre a pata do boi, cabendo ao vaqueiro o papel mais pesado – e certamente mais necessário – no desdobramento vitorioso da civilização pecuária. Mas esse foi sempre um esforço sem reconhecimento, o vaqueiro ficando à sombra nas proclamações do mérito, como nas recompensas materiais. A cultura toda própria do homem encourado não merecendo mais do que o esquecimento”, descreve o historiador.
Já a escritora Joana Medrado, no livro “Terra de Vaqueiros”, faz uma análise do que Euclides da Cunha definia como “servidão inconsciente”. Segundo a escritora, a relação ‘patrão X vaqueiro’ gerou “solidariedade moral”, ligando as diversas camadas sociais e conferindo estabilidade àquela sociedade. “Essa visão clássica das relações sociais baseava-se em relatos de viajantes e quem sabe na própria visão dos fazendeiros a quem interessava fazer crer que seu mundo era moralmente justo. Entretanto, desde pelo menos a década de 1970, revisões historiográficas sucessivas buscaram superar aquela visão quase idílica. O que emergiu dali foi um Sertão marcado pelas desigualdades, pela escravidão e por fortes laços de dominação e de dependência. Mas, ao desbancar-se aquela visão idealizada, ficaram em segundo plano as noções de honra, fidelidade e solidariedade, princípios morais que, segundo memoraIalistas, regiam as relações sociais nos sertões”.
Ambiente de trabalho do vaqueiro, na maior parte do tempo, é rude e perigoso
O que alentaria a falta de valorização da luta de vaqueiro seria, na teoria, a regulamentação da profissão. Em 2013, a notícia da sanção do projeto de lei que reconhece essa atividade levou esperança para os sertanejos. Mas não passou da teoria. Na prática, a norma não é cumprida e o vaqueiro, principal vítima do descaso, além de sofrer tentando sobreviver diante da pobreza e da seca do Sertão, é desrespeitado e seus direitos trabalhistas não são cumpridos. E mesmo se não possuir vínculo com algum patrão, o vaqueiro do Sertão pernambucano não consegue aposentadoria se denominando como tal. Ele assume um desvio de função perante os órgãos competentes, afirmando ser agricultor e não vaqueiro, em busca de remuneração que garanta a sua sobrevivência e da sua família.
Os cruéis detalhes do esquecimento dos homens do Sertão são revelados pelo LeiaJá, que conviveu com vaqueiros em três importantes cidades do Sertão de Pernambuco. Nos municípios de Serrita – a capital do vaqueiro, Salgueiro e Cedro, encontramos homens simples e cheios de histórias para contar. Muitas delas tristes e que, vez ou outra, remontam à exploração trabalhista e descumprimento da Lei do Vaqueiro.
A dura realidade da caatinga e os perigos da pega do boi mostram o quanto é duro – e ao mesmo tempo heroico – ser vaqueiro: acidentes de trabalho são tão comuns quanto o calor sertanejo. O Especial “Vaqueiros – A Luta e a Lei” vislumbra também possibilidades de reestruturação e resgate dessa profissão, que através dos braços e do suor dos homens sertanejos, construiu o Sertão do Brasil.
Fonte: Fundação Dom Bosco e Leia Já.